Literatura e realidade, em vários momentos, se encontram e se entrelaçam na vida e na escrita literária. No meio das palavras e das histórias, podemos encontrar verdades e o mundo concreto que nos atravessam, além de termos um espelho que mostra quem somos e como nossa sociedade é complexa. É o caso da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus – que completaria 109 anos no último dia 14 de Março – e que narra sua realidade atravessada pela fome e por seu sonho de ser escritora.

Carolina escreveu em seus diários, feitos com o papel que catava pelas ruas de São Paulo nos anos de 1950, os registros de sua dura vida na favela do Canindé, localizada na região central da cidade – e que hoje poderia ser localizada na área da Mooca. Destacamos que, por conta do sucesso literário de Carolina, a prefeitura de São Paulo mandou demolir a favela como tentativa de esconder o que ali acontecia dos olhos do mundo. Mas, apesar de sua tentativa de apagamento, não foi possível conter o impacto de Quarto de despejo: a obra conta com traduções para diversas línguas, além de consagrar sua autora como Doutora Honoris Causa pela UFRJ  no ano de 2021.

A fome, o racismo e o cotidiano na favela eram temas recorrentes em suas escritas, convivendo dialeticamente com seus desejos e sonhos legítimos como todo ser humano, assim como é mostrado em “A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido” (JESUS, 2014 p. 27).  Seu olhar para a beleza das miudezas da vida suas mazelas resistiam, por mais duras que fossem as vivências do racismo e da negação de sua humanidade pela falta de políticas públicas.

Nesse sentido, a escritora nos proporcionou a oportunidade de olharmos para o que o Poder Público vira os olhos, nos conduzindo para a realidade da fome à época. Entretanto, o que Carolina mostrou não habita apenas o passado do Brasil. Infelizmente, a insegurança alimentar é uma verdade que assola a vida de diversos brasileiros, principalmente da população negra.

Dados da pesquisa RBP PENSSAN – Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – mostram que, em 2022, 58,7% da população brasileira se encontrava em algum grau de insegurança alimentar. Além disso, ao olhar para os dados a partir de uma perspectiva racial, os resultados são ainda mais graves: 18,1% da população negra e parda brasileira estava em insegurança alimentar grave. Outros dados coletados pela pesquisa podem ser consultados aqui .

Vale ressaltar que vários estudos demonstram como autores de outras épocas como Josué de Castro  já mostravam com estudos como essa realidade da fome era uma questão social de distribuição de riquezas. Hoje, com estatísticas refinadas sobre a insegurança alimentar, são estabelecidos diferentes graus, de acordo com o acesso regular e permanente a alimentos: Insegurança Alimentar Leve – quando há incerteza em relação ao acesso aos alimentos em um tempo próximo e/ou quando a qualidade do alimento já está comprometida; Insegurança Alimentar Moderada – quando há quantidade insuficiente de alimentos e Insegurança Alimentar Grave – quando há privação de alimentos e, consequentemente, fome.

“Não havia papel nas ruas. Passei no Frigorifico. Havia jogado muitas linguiças no lixo. Separei as que não estava estragada. (…) Eu não quero enfraquecer e não posso comprar. E tenho um apetite de Leão. Então recorro ao lixo.” (JESUS, 2014, p. 78-79). Relatos de fome, de comida estragada e procuras no lixo tocam em nosso âmago no LADIGE se compromete em mostrar como a literatura é uma das formas de expressar a realidade alimentar brasileira, passado e, infelizmente, no presente.